Arte Capital, 2018

https://www.artecapital.net/entrevista-241-luisa-jacinto


O corpo de trabalho de Luísa Jacinto, embora já tendo compreendido diversos meios, destaca-se sobretudo pela prática da pintura, ultimamente explorada a partir de dois formatos distintos, como comprovam as suas mais recentes exposições, ambas com curadoria de Sérgio Fazenda Rodrigues: Podemos Sempre Fugir de Carro, na Fundação Portuguesa das Comunicações, e We had the experience but missed the meaning, patente até ao dia 19 de maio de 2018, na Galeria Silvestre, em Madrid.

Por Beatriz Coelho


BC: Comecemos exatamente por dividir a tua exploração na pintura, a partir das duas dimensões tão radicais: pequeno e grande formato, que encontramos em diálogo nas tuas últimas exposições.


LJ: São como as faces da mesma moeda. Trabalho sobre os dois formatos simultaneamente. No pequeno formato, interessa-me a concentração, a dimensão do quase nada e o facto de serem peças que pedem isolamento - uma pessoa para uma peça (três pessoas não vêm uma pintura destas ao mesmo tempo). Por outro lado, o grande formato entra em relação com todo o corpo do observador, relaciona-se com o espaço envolvente de uma maneira completamente diferente, projetando-se e ativando um campo de permanente vibração e descoberta para mim.


BC: As pinturas de pequenas dimensões, maioritariamente figurativas, parecem fixar-se numa fase de determinada ação e que, a partir de uma lógica linear ou sequencial, permitem ao espectador prever tanto o momento imediatamente anterior, quanto o seguinte. Pinturas, portanto, que refletem uma continuidade, como se de um fotograma se tratasse.


LJ: Estas pinturas recentes de pequeno formato fazem parte da série All I want, que teve início no final de 2016. São pinturas a óleo sobre papel preparado com acrílico, recortado à mão. Partem de imagens de origens muito distintas, desde a história da arquitetura, fotogramas de cinema, fotografias que alguém fez de momentos comigo, e até imagens que encontrei (e me encontraram) na internet. São todas reunidas sob um mesmo horizonte de relevância, numa espécie de atlas-memória espontâneo que se vai alargando. Parecem fotogramas, por um lado, porque as dimensões são próximas das dos negativos e algumas pinturas têm uma proporção de longo formato, e também, por outro lado, pelo modo com as relacionámos (o Sérgio Fazenda Rodrigues e eu) linearmente na exposição Podemos sempre fugir de carro. Não têm uma ordem entre si, mas penso que é inevitável essa sugestão narrativa ou temporal entre pinturas figurativas muito concretas. Não há qualquer trama ficcional para além delas mesmas – a não ser a que o observador queira encontrar.


BC: Já as pinturas de grandes dimensões, essas, essencialmente abstratas, compreendem uma lógica que deixa de ser linear e passa, diria, a um entendimento de profundidade, que parece resultar de uma constante dualidade entre dois espaços. Um deles é notoriamente tangível, geométrico, ortogonal e firme, contrastando com um outro: aberto, orgânico, e que dilui qualquer possibilidade de limitação. Nestas pinturas, o nosso olhar deixa de prever, sendo, em vez disso, transportado. Parece-me portanto, uma pintura que em vez de sequencial (como as de pequenas dimensões), integra antes uma passagem de absorção ao espectador, através de um campo aberto: místico, quase transcendente, como se de uma espécie de portal se tratasse. Será aqui, assim, uma questão de espacialidade?


LJ: Este corpo de trabalho de pinturas de grande formato: Threshold, na exposição Podemos sempre fugir de carro e Inside-Out, na exposição We had the experience but missed the meaning, foram trabalhos em que quis ficar na fronteira entre abstração e figuração. São pinturas com a escala do nosso corpo. Em termos de representação, os planos espaciais são credíveis não só pela perspetiva e valores cromáticos, mas porque têm uma escala semelhante àquilo que representam. Por outro lado, estes espaços geometrizados abrem para um campo aberto onde a pintura é mais difusa, mais difícil de definir, estranha. Esse plano de fundo, pode sugerir espaço em abstrato, mas também se assume como superfície de pintura simplesmente. Esse movimento pendular, entre uma passagem espacial e uma vertigem de outra ordem continua a ser um campo de descoberta para mim, porque é essa a minha experiência da realidade. A ideia de vertigem esteve sempre muito presente para mim – a vertigem que há em experimentar a realidade como figurativa e abstrata simultaneamente. É muito sugestiva para mim a ideia de transporte, ligada à ideia de passagem. Mas, na verdade, não te sei responder completamente. Não sou capaz de interpretar as minhas pinturas – acredito que elas se cumprem no outro, no observador que as queira ver.


BC: O que retiras da exploração destes dois formatos? E qual a relação que ambos conseguem estabelecer com o espectador?


LJ: Os dois formatos surgiram na sequência do que andava a fazer. Comecei a fazer os pequenos numa altura de extrema saturação com o que se passava, com os constrangimentos que sentia - imaginários e reais – em relação ao meu trabalho, à minha vida, a estar viva! Fiz exatamente o que me apeteceu como me apeteceu, fiz o que tive de fazer como sabia. Muitas vezes não sei o que estou a fazer - isso vem normalmente depois. Trabalhei sobre imagens relevantes para mim. A dimensão minúscula também foi intuitiva – era a mais correta para o que estava a fazer. As pinturas pequenas pedem atenção, lentidão e a proximidade da escala de um livro, de uma iluminura, numa intimidade que cresce na imaginação do observador, vão-se expandindo. As pinturas grandes – tive oportunidade de o verificar várias vezes – instigam movimentos pendulares, hesitantes em quem as vê – também pelo hiato entre representação e abstração, e pelos diferentes tratamentos das superfícies se revelarem muito diferentes consoante a distância a que são vistos. As pinturas grandes vieram na sequência da série Nameless, que acabei por não mostrar ainda. É uma série de pinturas de médio formato em que explorei a relação de espaços arquitetónicos de tipo modernista com um exterior natural não domesticado. A série Threshold é a continuação desse trabalho, com maior síntese e maior escala.


BC: E a relação entre as próprias pinturas? De que modo os dois formatos se relacionam entre si, de um ponto de vista expositivo?


LJ: Na exposição Podemos sempre fugir de carro, as pinturas pequenas ficaram todas juntas, em linha, no início da exposição – à direita, e as pinturas grandes relacionaram-se com o resto do espaço expositivo e entre si. Na exposição atual, em Madrid, o Sérgio Fazenda Rodrigues e eu optámos por dividir as pinturas pequenas em dois núcleos (também respondendo às características espaciais da galeria) e colocámo-las abaixo no nível normal, tendo o observador de se baixar para realmente as conseguir ver. A ideia de ter um trabalho quase insignificante, que só é visto por quem quiser mesmo, que não se imponha de forma alguma, sempre me agradou e penso que nesta exposição talvez tenha conseguido concretizar essa ideia melhor. As pinturas grandes são acompanhadas por estas quase notas de rodapé, que as contrariam e simultaneamente complementam.


BC: As ideias ou sensações que a tua obra traduz, refletem-se como uma tendência intrínseca no teu corpo de trabalho, tornando- o tão próprio, e dos quais poderia enumerar a memória, uma atenção ao detalhe, ao despercebido, ao aparentemente banal ou quotidiano, também o tempo, uma vaga melancolia e a referida passagem. Tais aspetos parecem ser explorados através de uma constante pesquisa e de um desenvolvimento que é contínuo e cada vez mais profundo. Como terás dito no passado: “Say something again and say it better”. Queres desenvolver um pouco esta abordagem?


LJ: Por vezes, pinto várias vezes a partir da mesma imagem, até com anos entre as diferentes versões. Outras vezes, pinto com uma serialidade programada de cinco pinturas por dia a partir da mesma imagem, durante determinado tempo (um mês, como aconteceu na série Resistir, de 2012). Isto porque, aquilo que queria traduzir ou agarrar, não se esgotou nessa mesma tradução (uma vez que existem várias formas de dizer algo).


BC: Pesquisei acerca da tua exposição Basta um só dia, onde me apercebi de obras como: Espera, Procura, Intervalo ou Perto, das quais fiquei novamente imersa numa ideia de transição, neste caso, uma transição onde todos nos encontramos: estranhos, “estrangeiros”, na procura de compreendermos e nos compreendermos. Também me apercebi de outras obras tuas que, de modos distintos, refletem algumas das ideias que acima mencionei.


LJ: Essa foi uma exposição individual que tive no Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, S. Miguel, Açores, com curadoria de João Miguel Fernandes Jorge, em 2012. Penso que essa ideia de passagem ou transição, da maneira como a pões, faz todo o sentido. O desenvolvimento do meu trabalho e as mudanças que ele vai tendo, é coisa que talvez seja melhor outros pensarem. Estou demasiado próxima para um olhar objetivo. Vou trabalhando o que tenho de trabalhar, sem olhar para trás – e também não consigo ver muito para a frente. É o que tenho entre mãos que me ocupa. Não me preocupa a coerência formal que o trabalho tenha ao longo dos anos, porque se estamos concentrados no trabalho, no final de contas, um artista só consegue dizer uma ou duas coisas com toda a sua obra. Que nos reinventemos nessa tentativa é natural, aliás, para mim é vital: tento fugir de zonas de conforto, são inimigas discretas e fatais de um processo criativo corajoso e surpreendente, mas sou sempre só eu.


BC: Acredito que as tuas referências sejam várias e de naturezas distintas (Cinema, Literatura, Pintura, e até experiências passadas). Gostava que referisses algumas delas.


LJ: São tantas! Mas poderei mencionar, de forma caótica e com falhas tremendas, na Literatura: Rafael Sanchez Ferlosio, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Adélia Prado, o East of Eden de Steinbeck, Kipling, Homero, Rimbaud, Eugénio de Andrade, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, Herberto Helder, T.S. Elliot e a Bíblia... No cinema: Tarkovsky, Bergman, Mizoguchi, Pedro Costa, Elia Kazan, Chris Marker, Agnés Varda... Nas Artes Visuais: Velásquez, Morandi, Francis Bacon, Robert Irwin, David Hockney, Isa Genzken, Dana Schutz, João Queiroz, Menez, Jorge Queiroz, Daniel Barroca, Tacita Dean, Poussin, Aernout Mik, Manuela Marques, Michael Borremans, Jimmie Durham, Robert Gober, Mamma Andersson, António Júlio Duarte, Kerry James Marshall, Miroslaw Balka, Susanne Themlitz, Janet Cardiff, George Muller, Sofia Hultén...


BC: Por fim, e trazendo unicamente as experiências passadas como uma questão autorreferencial. De que modo, expondo pequenos detalhes, se é capaz de traduzir algo que é, na verdade, universal?


LJ: A grande concentração pode dar um enorme campo aberto. Mergulhar a pique numa experiência pessoal também é abrirmo-nos a uma vulnerabilidade que partilhamos. Essas experiências autorreferenciais não têm qualquer relevância para o trabalho – têm-no como trampolim, como situações em que estive em contacto com algo forte o suficiente para ter que o trabalhar. Penso que as experiências em si são anónimas, a minha maneira de as viver é pessoal, e a maneira como as uso no trabalho também se quer distante de mim.

Margarida Fabrica